Ponto de contato nacional para a Rede Europeia de Organismos de Competência em Banda Larga (BCO)
Consultor Principal na ANACOM
O conceito de Open RAN (ORAN – Rede de Acesso Rádio Aberta) é subsumível essencialmente a uma solução de rede baseada em software, suportada em interfaces abertos e modulares no âmbito da Rede de Acesso Rádio (RAN), com o desiderato de tornar tais interfaces mais interoperáveis. Consequentemente, as componentes de hardware e software podem ser oferecidas por diversos fornecedores e a virtualização e convecção (“cloudification”) das interfaces e outros elementos pode capacitar os operadores a “correr” serviços de software em hardware genérico. [1]
Embora as normas ORAN sejam aplicáveis a outras redes móveis (e.g. LTE), o seu desenvolvimento e aperfeiçoamento foi gizado nitidamente com foco nas redes 5G e antevendo já a evolução previsível para o 6G.
Sinteticamente, a RAN contém três elementos fundamentais, a saber: Unidade de Rádio (RU), Unidade Distribuída (DU) e Unidade Centralizada (CU).
A RU, localizada próxima da antena ou integrada nesta, é onde os sinais de radiofrequência são transmitidos, recebidos, amplificados e digitalizados.
A DU e a CU são as partes de computação da estação base, enviando o sinal de rádio digitalizado para a rede. A DU está fisicamente na RU ou perto dela, enquanto a CU pode estar localizada mais próxima da rede core.
O fronthaul conecta a RU e a DU, enquanto o midhaul estende-se entre a DU e a CU e o backhaul liga a RAN ao core.
Esquematização gráfica de RAN
A ORAN fornece virtualização e interfaces abertas para todos os componentes (incluindo RU, DU e CU abertas). A RU é um projeto de rádio aberto e fornece interfaces abertas para a DU. A DU e a CU são também abertas e o software é executado em servidores. Deste modo, os operadores de rede podem combinar hardware e software de diferentes fornecedores e da comunidade de código aberto.
Ademais, a ORAN permite uma monitorização contínua do estado do desempenho da rede e dos recursos da rede, com pouca intervenção humana, tendo capacidade para otimizar a gestão de rádio por forma a melhorar a performance da rede e a experiência do utilizador, até porque permite afinar algoritmos de controlo tais como os relacionados com balanceamento de carga, gestão da mobilidade, gestão de qualidade de serviço e, em certa medida, poupança da energia da rede.
Tudo isto se repercute em potenciais vantagens evidentes face à RAN “tradicional” consubstanciada numa rede proprietária fisicamente integrada com funções baseadas em hardware muito customizado fornecido por um único fabricante e sem interoperabilidade com equipamentos fornecidos por outros fabricantes.
No entanto, sem prejuízo de implementações limitadas levadas a cabo, por exemplo, pela Vodafone na Irlanda e no Reino Unido, Optus na Austrália ou Axiata na Indonésia, a ORAN não se encontra atualmente implementada a nível significativo (com exceção dos EUA e do Japão) [1] [2] [3].
De entre os fatores que estarão a limitar o desenvolvimento da ORAN, sobressaem alguma falta de maturidade das normas, aspetos de interoperabilidade e de segurança, uma maior complexidade na integração e operação de elementos de rede de diferentes fornecedores (com a concomitante dificuldade de imputação de responsabilidades individuais), a falta de escala de todo o ecossistema e alguma dificuldade também em responder a desafios suscitados pelas exigências de carga de tráfego e de latência ultra-reduzida para implementação de 5G em ondas milimétricas [1] [2] [4] [5].
Todavia, a ORAN será uma realidade comercial generalizada a curto ou médio prazo [1] [2].
Com efeito, estima-se que entre 2020 e 2028 a taxa de crescimento anual composto (CAGR) para o mercado global ORAN se alcandore a 83%, com um valor de mercado em torno de 21 371 milhões USD em 2028 [6], dos quais uma parte não despicienda resultará ainda da venda de unidades rádio [7].
Para compreender a magnitude desta taxa de crescimento, importa reconhecer que os motivadores da adoção da ORAN não se cingem somente a aspetos de índole comercial – tais como, por exemplo, a redução do custo total de propriedade (TCO) – é comummente estimado que a RAN representa entre 70% e 80% do custo total de uma rede móvel – e da melhoria do retorno sobre o investimento (ROI)[8], a aceleração do ciclo de inovação, a melhoria da eficiência da rede, a facilitação da partilha de rede e do acesso a hardware comercial “off the shelf” (COTS) – mas outrossim a considerações geopolíticas longamente maturadas e tendentes à diversificação da cadeia de abastecimento, nomeadamente nos casos do Reino Unido [9] [10] [11] e dos EUA [12] [13] [14].
Mais recentemente e já em reação aos efeitos económicos e humanitários decorrentes da crise na Ucrânia, o governo italiano aprovou o Decreto-Lei nº 21/2022, de 21 de março o qual, para além de expandir a possibilidade de exercício de uma “golden share” em processos de aquisições de empresas, capacita ainda o governo a exercer poderes de veto e ou restrições no tocante à conceção, construção, gestão e operação de redes e equipamentos 5G e à escolha de fornecedores. Também este ano, o governo espanhol aprovou o Decreto-Lei nº 7/2022, de 29 de março, especificando requisitos de segurança para redes e serviços de comunicações 5G, avultando inter alia, condições favorecendo também a diversificação de fornecedores, para além de avaliações de risco e implementação de outras medidas focadas na mitigação de risco na implementação de redes 5G.
Embora a ORAN não seja explicitamente mencionada na “caixa de ferramentas” da UE para Cibersegurança 5G [15], é usualmente percebida como uma ferramenta para implementar algumas medidas dessa “caixa de ferramentas”. A ter em conta, em especial que, no fundo, a supramencionada “caixa de ferramentas” apela aos operadores de redes móveis que não dependam unicamente de um fornecedor de equipamentos (em especial quando este tenha um elevado perfil de risco) mas sim de vários, apresentando nesse âmbito um conjunto de medidas técnicas (e.g. certificação de componentes) e estratégicas (e.g. auditorias e definição de especificações técnicas).
Isto para além, obviamente, de a aludida “caixa de ferramentas” se encontrar impregnada de uma forte tonalidade política, motivando a que se verifique em última instância, no caso de países terceiros, a capacidade de os governos destes exercerem pressão sobre o fabricante, as condicionantes da estrutura corporativa do fabricante, a existência de acordos de proteção de dados entre os países terceiros e a UE e ainda o regime de “freios e contrapesos” democráticos associados ao regime de governação desses países terceiros. [16]
A eficiência e consumo energéticos foram também identificados como um sério desafio no escopo da ORAN, uma vez que pode ser mais difícil medir e controlar o consumo energético em cada parte da rede e o consumo energético poderia até incrementar devido à otimização da flexibilidade e da interoperabilidade. [5]
Destarte, foi interessante a recente publicação de um documento dos cinco maiores operadores europeus (Deutsche Telekom, Orange, Telefónica, TIM e Vodafone), endereçando o foco na eficiência energética da ORAN [17]. Aí se endereça a necessidade de se desenvolverem políticas e ações robustas de I&D e de se contribuir para o estabelecimento de objetivos relevantes em quatro pilares:
Os mesmos cinco operadores publicaram também recentemente outro documento de trabalho [18] no qual procuram identificar e endereçar sete grupos de ameaças à segurança da esfera da ORAN, podendo sublinhar-se, inter alia, os relacionados com o emprego de códigos de programação abertos, bibliotecas não confiáveis suscetíveis a ataques “backdoor”, alterações de modelos de aprendizagem de máquina (“machine learning”), configurações fracas do orquestrador, falsificação de mensagens de planos, ataques de negação de serviço (DoS,) debilidades de autorização , espionagem no tráfego para aceder a dados na carga de trabalho e comprometer serviços e acessos não autorizados a interfaces.
Veremos proximamente que desenvolvimentos empíricos decorrerão efetivamente das ações sustentadas pela indústria, em que medida poderão contribuir para o ritmo de implementação da ORAN e, sobretudo, qual o seu real impacto em termos de sustentabilidade e de salvaguarda da segurança e privacidade.
Em geral, o cenário que parece ser mais impactante na implementação articulada entre 5G e ORAN é avistado em [5], podendo o enredo ser sinteticamente cerzido com as seguintes linhas:
O impacto resultante deste cenário solidifica-se sucintamente nos seguintes resultados [5]:
É possível destacar resultados de uma investigação muito recente [19], na qual se simulou para a área geográfica do município de Lisboa, tomando por referência a estrutura atual de rede de um dos três maiores operadores de rede móveis nacionais, uma migração paralela de uma rede 4G com arquitetura tradicional RAN para uma rede 5G assente numa arquitetura ORAN (com backhaul suportado predominantemente por fibra óptica, considerando-se residualmente ligações móveis sem fios), no decurso de um período de cinco anos.
Foram analisados especificamente três casos de uso, designadamente Enhanced Mobile Broadband (eMBB) [simulando que todos os utilizadores estariam a usar uma aplicação de realidade virtual], Massive Machine Type Communications (mMTC) [considerou-se uma dispersão, pela cidade de Lisboa, de sensores relacionados com iluminação inteligente e com a estimação da capacidade das lixeiras] e Ultra Reliable Low Latency Communications (URLLC) [assumindo-se a contribuição dos veículos autónomos num dado momento, excluindo a sua mobilidade].
Sem prejuízo de no caso da eMBB, os resultados apontarem para a necessidade de um investimento significativo no reforço das ligações da rede de acesso, por forma a ultrapassar o congestionamento decorrente do elevado crescimento do tráfego, os resultados sugerem a efetiva viabilidade económica da adoção de arquiteturas de referência ORAN.
Naturalmente, para além da análise custo-benefício associada à implementação generalizada desta arquitetura de rede, quer em sentido estrito quer considerando ainda externalidades associadas à sustentabilidade ambiental e social induzida pela mesma, haverá ainda que sopesar prudencialmente – à luz da evolução do risco geopolítico e das circunstâncias que nos tornam, de certa forma, “prisioneiros” da nossa própria geografia e da geografia dos nossos parceiros históricos [20] [21] – vetores adstritos à segurança das redes de serviços 5G e da cibersegurança lato senso que não deixarão de enformar as possíveis opções de implementação.
Em conclusão, do diagnóstico permanente resultante da monitorização e supervisão contínuas da evolução das redes e serviços móveis e seus substitutos – em que como se viu, no âmbito da migração para ORAN avultam para além da viabilidade económica do negócio, relevantes aspetos no domínio da concorrência, segurança, privacidade e sustentabilidade – bem como da avaliação das efetivas necessidades dos utilizadores finais, deverá resultar uma identificação clara, sustentada e objetiva da (des)necessidade de ações adicionais no domínio da regulação e das políticas públicas, com vista a proteger os interesses estratégicos do Estado e dos utilizadores finais.
Referências do artigo:
[1] BEREC (2022). An overview of the BEREC work on the Open Radio Access Network (RAN) – BoR (22) 23.
[2] Cullen International (2022). Global trends cross-country analysis – Open RAN.
[3] Financial Times (2022). Vodafone launches first 5G ‘open RAN’ site in UK. Edição de 19.01.2022.
[4] Analysis Mason (2021). Open RAN: ready for prime time? The operators’ perspective.
[5] AIT (Austrian Institute of Technology) et al. (2020). 5G Supply Market Trends.
[6] Research Nester (2022). Open Radio Access Network Market.
[7] RAN Research (2022). Open RAN faces significant challenges in the Macro RA.
[8] ACG Research (2021). The economic benefits of Open RAN Technology.
[9] DCMS (2021). Setting the Scene: DCMS Telecommunications Supply Chain Diversification.
[10] UK Parliament (2021). 5G market diversification and wider lessons for critical and emerging technologies.
[11] Financial Times (2021). Huawei equipment quality still insufficient says UK. Edição de 21.07.2021.
[12] Financial Times (2021). US-China business: the necessary reinvention of Huawei. Edição de 29.09.2021.
[13] Financial Times (2021). Huawei suffers biggest-ever decline in revenue after US blacklisting. Edição de 09.08.2021.
[14] Financial Times (2021). Developing countries sign Huawei deals despite US espionage warnings. Edição de 17.05.2021.
[15] NIS Cooperation Group (2020). Cybersecurity of 5G networks – EU Toolbox of risk mitigating measures.
[16] Monti, Giorgio e de Streel, Alexandre (2022). Improving EU institutional design to better supervise digital platforms. CERRE.
[17] Deutsche Telekom et al. (2022a). Open RAN Technical Priorities – Focus on Energy Efficiency under the Open RAN MoU.
[18] Deutsche Telekom et al. (2022b). Open RAN Security White Paper under the Open RAN MoU.
[19] Matos, Rafael (2022). Migration Analysis of a Conventional RAN to Open RAN Technology, in 4G/5G Networks. Thesis to obtain the Master of Science Degree in Electronic and Telecommunications Engineering. ISEL.
[20] Marshall, Tim (2021). O poder da geografia: Dez mapas que revelam o futuro do mundo. Edições Saída de Emergência. ISBN 978-989-9033-39-9.
[21] Marshall, Tim (2017). Prisioneiros da geografia: Dez mapas que lhe revelam tudo o que precisa de saber sobre política internacional. Edições Saída de Emergência. ISBN 978-989-99875-0-0.
Abril de 2022
SOBRE O AUTOR:
Carlos Costa é Consultor Principal da ANACOM onde trabalha há cerca de 27 anos. Tem uma vasta experiência na área de regulação e políticas públicas (em especial análise de mercados, poder de mercado significativo, aplicação de obrigações, oferta do lacete local, partilha de infraestruturas, NGN, VHCN, conectividade internacional, modelos e auditorias de custeio, e-comércio, atividades espaciais, 3G, 4G, 5G e 6G) e na realização de estudos (tendo desenvolvido ou contribuído para mais de 80 estudos no sector das comunicações).
É atualmente copresidente do ENG BEREC Sustentabilidade e ponto de contato nacional para a Rede Europeia de Organismos de Competência em Banda Larga (BCO). No plano internacional exerceu funções de presidente do GT BEREC/ERG/IRG Utilizador Final entre 2004 e 2016 e foi copresidente, em 2015, do GT conjunto BEREC- ERGP sobre supervisão regulatória de encomendas de e-comércio. Participou também em mais de 30 GT em organizações como a OCDE, UIT, BEREC, ERG, IRG, ECTRA, ARCTEL, CPLP, UPU, CERP, COCOM, Comité ONP, Comité Para a Sociedade da Informação, Comité Financeiro para as Redes Transeuropeias, Comité Para a Diretiva Postal e GT da CE para Reclamações de Consumidores.
A nível nacional foi, nomeadamente, representante da ANACOM na Comissão de Acompanhamento da Agenda Portugal Digital, ponto focal para o Programa Nacional de Infraestruturas 2030, coordenador do GT ANACOM para implementação setorial das medidas do MoU entre Governo e Troika, membro de GT do Conselho Superior de Estatísticas e membro da Unidade de Gestão da Intervenção Operacional de Telecomunicações.
Foi ainda professor convidado e formador em cursos especializados da Florence School of Regulation, Communications and Media do Instituto Universitário Europeu, Faculdade de Direito da Universidade Católica de Lisboa, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Centro de Excelência da UIT, Comissão Europeia e outros organismos internacionais.
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